quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sobre a possibilidade da razão sem fé

Caros amigos,

Ontem, sobre o cair do pano da nossa reunião, proferi uma afirmação que, contra as minhas expectativas, gerou dissonância entre os presentes. Providencial, na medida em que é oportunidade para dar estofo aos propósitos que nos levaram à criação do FRA. Julgo que esta questão, que, a meu ver, como pretendo demonstrar a seguir, é pacífica (apenas careceu de tempo para ser explicitada) pode no entanto levar-nos a questões mais bem mais complexas como a possibilidade do ateísmo puro ou a validade/possibilidade de uma razão ideológica ou religiosamente asséptica. Assim sendo, fazendo jus à verdadeira vocação do FRA, pretendo dar o pontapé de saída para uma discussão que nos poderá conduzir a outros campos onde se pode aprofundar a dialéctica do binómio Fé e Razão.
Por outras palavras, quando eu disse que “é possível a razão sem a fé”, era minha intenção (se os termos foram bem empregues ou não, veremos a seguir) afirmar algo que para mim é elementar e incontestável: é possível a filosofia e a ciência sem a fé em Deus. Se alguém quiser contestar esta afirmação estou curiosíssimo por conhecer os argumentos. E, se o conseguir demonstrar com propriedade, é um contributo inestimável que traz ao mundo do pensamento. Que a filosofia e a ciência, que eu albergo sob o tecto da razão, seguindo as directrizes da própria encíclica Fé e Razão [cf. 4, 5], podem funcionar sem o auxílio da fé (embora nós cristãos vejamos aí uma lacuna, como bem sustenta toda a Encíclica Fé e Razão; o Catecismo da Igreja Católica, nos nºs 31-43, 50, 156-159; e já antes Conc. Vaticano I: DS 3004, 3026; e Pio XII, enc. Humani generis: DS 3875) testemunha-o grande parte da ciência e da filosofia produzidas desde o séc. XVIII até à actualidade e das quais não podemos fazer tábua rasa, pois contribuíram enormemente para o conhecimento do homem e do mundo. Mal estaríamos se apenas os crentes em Deus pudessem ser cientistas e filósofos. E alguém me vai dizer que os contributos que ateus e agnósticos trouxeram à humanidade com o auxílio da razão é dispensável, ou até despiciendo? Até um filósofo cristão como Paul Ricœur, agraciado pelo Vaticano, teve, assumida e declaradamente, o salutar cuidado de separar as águas e não misturar dogmas religiosos com filosofia, inibindo-se de meter explicitamente Deus e a religião no seu pensamento filosófico. Percebeu claramente que podia chegar ao mesmo sítio, ser mais convincente e universal, não conferindo um tom confessional explícito ao seu pensamento.
Acreditando que até aqui estamos todos de acordo, resta-me deduzir que o pomo da discórdia provém da polissemia dos conceitos empregues. “A linguagem é fonte de mal-entendidos”, lá dizia o Principezinho. Posto isto, a minha polémica afirmação «é possível a razão sem fé» tem de partir necessariamente de uma clarificação de conceitos. Não creio que o problema esteja no conceito de razão, ainda assim tentemos esclarecê-lo, sem a exigência que uma definição inexpugnável e rigorosa requereria. A despeito das nuances, as várias definições de razão que consultei remetem, por palavras minhas, para a ideia basilar de faculdade intelectual/mental do ser humano que lhe permite conhecer, compreender e raciocinar (seja sob o modo lógico-hipotético-dedutivo, indutivo ou argumentativo) alcançando verdades acerca do ser e da realidade que o envolve. A própria encíclica Fé e Razão, sem nunca tentar explicitamente uma definição, parece ir nesse sentido ao dizer que a razão recta (orthos logos, sim um dos significados do termo grego logos é razão) consegue «intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica» [4]. Coloca dentro do conceito de razão «sistemas de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos sectores do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história. A antropologia, a lógica, as ciências da natureza, a história, a linguística, todo o universo do saber» [FR, 5].
No entanto, julgo que o busílis da questão vem da indefinição do conceito de fé. A minha polémica afirmação pode ser considerada incorrecta se entendermos a fé no seu sentido mais lato e abrangente, caucionado pela etimologia grega e latina. Neste âmbito, o termo “Fé” é plurívoco e pode ser usado, como é actualmente na linguagem corrente (até no mundo do futebol), em múltiplas acepções: “crença absoluta na existência de certo facto”; “convicção íntima”; “lealdade”; “crédito”; “confiança”; “prova”. Partindo deste feixe de significações, direi (com algumas reservas que carecem outro tipo de aprofundamento epistemológico e que têm que ver com a procura de prova que este tipo de crença exige) que não há razão sem fé. O problema é que eu não sei se é justo chamar fé a este tipo de atitude. A esta forma de fé assente no postulado e na confiança interpessoal a Encíclica Fé e Razão chama crença, separando muito bem a crença da fé, como eu próprio tentei fazer junto de vós ao defender a minha afirmação. Vejamos:

31 O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam «recuperadas » com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade?
Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças.

32 Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar progressivamente por meio da evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica, humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal, pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável e íntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe manifesta […].

33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. (28) Graças às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.
É bom não esquecer que também a razão, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos antigos, que punham a amizade como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto, superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo e nostalgia.


Acima, expusemos os vários sentidos de fé, mas não referimos, propositadamente, o significado religioso do termo, que a Encíclica e todos os escritos da Igreja desde a Bíblia emprega. Ainda que ignoremos esta diferença entre crença vulgar e Fé, considerando que tudo em que se acredita é fé e, logo, não pode haver razão sem fé, a dimensão cristã (já nem falo em religiosa que é para não nos perdermos nas areias dos politeísmos, gnosticismos e demais espiritismos) do conceito de Fé (crença em Deus Pai revelado em Jesus Cristo ressuscitado pela acção do Espírito Santo) é aquela no seio da qual foi proferida a minha afirmação – e lembro que ela foi produzida no contexto da análise da Encíclica Fé e Razão. Ao dizer que é possível a razão trabalhar separada da fé, não estou obviamente a dizer que isso é suficiente. O Catecismo da Igreja Católica e a Encíclica que estamos a estudar atacam ferozmente essa separação, mas atacam-na exactamente porque têm como pressuposto básico (só assim se justifica a redacção da Encíclica, só faz sentido tentar conciliar aquilo que anda separado e se anda separado é porque se pode separar, perdoem-me o truísmo) que muitas vezes o exercício da razão é feito sem a luz da fé, resultando num conhecimento imanentista, reducionista, que fica muito aquém da verdade profunda e do sentido pleno sobre a natureza, o homem e as suas acções [cf. FR, 7, 15, 16]. A razão sem fé produziu o positivismo nos séculos XVIII e XIX e a tecnocracia no século XX. Razão sem fé é ciência sem crença numa divindade superior, criadora do universo que confere sentido a tudo o que existe. A razão só por si (sem a fé) consegue alcançar a verdade, mas sem a fé não consegue aprofundar plenamente o sentido da existência humana. A este propósito, leia-se todo o capítulo II da Encíclica. A meu ver, o mais belo e interessante. Todo ele insiste na necessidade de aliar a razão à fé, porque apesar de reconhecer autonomia à razão, o Papa diz que a razão terá muito a ganhar se se aliar à Fé e vice-versa. Que tem a ganhar? O sentido da própria existência humana, do mundo e da história.

Pela razão o homem atinge a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência [FR, 20].

Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história sem, ao mesmo tempo, professar a fé em Deus que neles actua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência […] Por isso, a razão e a fé não podem ser separadas, sem correr o risco de o homem perder a possibilidade de conhecer, de modo adequado a si próprio, ao mundo e a Deus [FR, 16].

Pela razão sem fé é possível conhecer os factos do mundo e da história, mas não profundamente, diz a Encíclica. É a fé que nos leva a descobrir «a presença operante da Providência».
E, agora sim, vou ser deliberadamente polémico e semear a discórdia. Reconheço a vantagem e a beleza de ver e estudar o mundo com os olhos da fé (de facto, poder encontrar um sentido maior para aquilo que a ciência ou o estudo ou a reflexão nos vão dando a conhecer é um privilégio do qual usufruo pelo dom da fé que Deus me vai dando), mas tenho sérias reservas acerca da proposta da encíclica de injectar fé na razão, se for entendida como proposta universal e superior, por um simples motivo: receio um retrocesso aos teocentrismos culturais, que normalmente degeneram em teocracias e daí em fundamentalismos e pensamento único e que por isso vão contra a cultura plural e laica (não laicista) que o próprio Concílio Vaticano II diz respeitar. Será que o ideal era que todos os cientistas e filósofos tivessem fé e acreditassem no Deus da Revelação? Ou seja, nenhum sistema filosófico ou científico que pusesse a verdade da Revelação em causa seria possível. Estou a fazer-me entender? Até que ponto não precisamos de ateus e descrentes? Não teríamos um mundo monocromático e unânime? Já para não falar que muitas das aquisições conseguidas pela ciência e pela filosofia ao longo dos últimos séculos se fizeram justamente à sombra do ateísmo e do agnosticismo. Hoje dizemos que é possível entender o evolucionismo com os olhos da fé. No tempo de Darwin não foi bem assim. Criação bíblica e evolucionismo eram incompatíveis. Hoje percebemos que é perfeitamente possível conciliar a teoria heliocêntrica com o Antigo Testamento. Na época não foi bem assim. A minha dúvida é se o homem não se pode conhecer de modo adequado a si próprio e ao mundo (a Deus está claro que não) sem a implicação da fé. Gostava muito de vos ouvir sobre isto. Estou apenas a lançar achas para a fogueira, não tenho opiniões definitivas. Aguardo comentários e respostas.