terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Verdade e Fé à luz do cepticismo relativista

«Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da reflexão sobre a verdade».
Foi sob os auspícios desta epígrafe extraída da introdução à Encíclica Fé e Razão que "simposiámos" - o Martinho, o Padre Nuno Santos, o João Frade, o Jorge Bernardino e o Edson - a tragos de um reconfortante chá para mitigar o frio. Esta exposição não pretende seguir ipsis verbis os intrincados e ramificados meandros da nossa conversa de cerca de duas horas e meia. Talvez se aproxime de uma modesta síntese estilizada, meis verbis, do transcorrido das nossas cogitações. Das três perguntas propostas, a primeira reteve, maioritariamente, a nossa atenção, convidando-nos a relacionar a tríade conhecimento-verdade-sentido com o problema hodierno do cepticismo-relativismo-desconfiança.
João Paulo II, ao aflorar Fides et Ratio, estabelece como fio condutor de Fé e Razão a questão premente da verdade: «Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio».
Depois de séculos de relativa tranquilidade e segurança, ora porque dominados por uma perspectiva teocêntrica, que tinha nas Sagradas Escrituras o fundamento apriorístico de toda a verdade e de toda a moral, ora porque dominados pelo paradigma positivista (antropocêntrico), que outorgou à razão e às ciências naturais um estatuto divino com jurisdição explicativa de âmbito universal e determinista, vemo-nos confrontados, no século XX com uma crise científica, ideológica e filosófica sem precedentes, em que «tudo fica reduzido à mera opinião» [FR, 5]. É verdade que o horror detonado pelas duas guerras mundiais teve aqui um efeito avassalador, fazendo desabar todo o optimismo racionalista, todas as ideologias políticas e convicções sociais, obrigando a filosofia a eleger como cerne do seu discurso quer a questão do mal quer a linguagem. No próprio baluarte científico se infiltrou a descrença e a dúvida, obrigando-o a moderar a sua auto-confiança. O segundo princípio da termodinâmica disse-nos que nunca podemos predizer o futuro de um sistema complexo. As estruturas dissipativas de Ilya Prigogine são sistemas abertos que contam com a imprevisibilidade do factor tempo. É verdade que pulularam as ciências ditas humanas (ou do espírito) com uma elevadíssima ambição científica e a sua obsessão pelos métodos quantitativos e pelas estruturas (exs.: a sociologia de Durkheim, a historiografia da escola dos Annales, o estruturalismo de Levy-Strauss, o estruturalismo linguístico de F. Saussurre que inspirou a semiótica de Greimas e Roland Barthes), e o consequente abandono da trama narrativa, reduzindo o ser humano a curvas de linha, a trends seculares e os seus textos a meras conjugações de signos linguísticos discretos e auto-referenciais, sem relação alguma com o mundo exterior. Mas rapidamente se percebeu que o mistério do ser humano escapava por entre os dedos apertados da fria ciência dos números e das estatísticas. Descontente e insaciável, a implacável geração da liberdade sexual e do rock and roll, que não admitia espartilhos, desenfreadamente abriu a porta às teses do relativismo pós-modernista. Esbatem-se as fronteiras entre o certo e o errado, entre a norma e o anormal, entre o particular e o universal, entre o centro e a margem e própria moral começa a ser questionada em todas as frentes. As minorias e as franjas sociais ganham uma força inaudível e determinados princípios que religiosamente conservávamos (e que, por vezes, se revestiam de hipocrisia, xenofobia e intolerância) são abalados. Mas é bem possível que, em nome da tolerância, do respeito e da pluralidade, tenhamos atirado fora a água e o bebé. No campo das ciências e da cultura assiste-se à mesma onda anárquica. É verdade que se recupera a narrativa, o mito e o símbolo para dizer a complexidade do homem e o sentido das suas acções, mas descurámos os limites das interpretações, abrindo espaço para uma espécie de novo luteranismo exacerbado. Sem rei nem roque cada um interpreta à sua maneira e pensa à sua maneira: o homem volta a ser a "medida de todas as coisas" (Protágoras, sofista grego do séc. V a.c.). História e ficção (Hayden White), realidade e opinião deixam de ser discerníveis, interpenetram-se. Exemplo emblemático está na forma como o nosso Saramago, filho da poética pós-modernista, brinca, deliberada e artisticamente, com a verdade oficial e oficiosa, em livros como Memorial do Convento ou História do Cerco de Lisboa, para não falar das suas leituras alegóricas da Bíblia. De repente, vemo-nos mergulhados na tirania da opinião, do subjectivismo e numa bagunça ético-moral na qual não parece haver plataforma possível de entendimento. Passamos de uma verdade inflexível, autoritária, oligárquica e até aristocrática a uma verdade fluída, volúvel, maleável, popular, democrática. Perde-se em grande escala a segurança do pensamento, as certezas do conhecimento, a confiança inter-pessoal e instaura-se um certo clima de desconfiança, de insegurança, de descrença, de absurdo, de errância. Por conseguinte, se os homens não confiam uns nos outros como podem confiar no Transcendente? Se os homens não acreditam em si próprios e nas suas realizações culturais, políticas e científicas, como poderão acreditar num ser supremo que por natureza se exime e transborda sobre qualquer tipo de fórmula, dogma, conhecimento científico, silogismo ou argumento racional? Ora, sem esta referência ao Transcendente, adverte João Paulo II, caímos no individualismo egocêntrico e na tecnocracia vigente em que «cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos [FR, 5]».
Deste descartar de Deus provêm as formas de agnosticismo e relativismo que nos conduzem às «areias movediças dum cepticismo geral» [FR, 5], que desvaloriza «até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado» [Ibid.]. Assistimos, pois, a um pluralismo indefinido, com a única convicção de que todas as posições são equivalentes, e a uma desconfiança generalizada nos recursos cognoscitivos do ser humano. «Com falsa modéstia, contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões» [Ibid.].
É sobre este pano de fundo que João Paulo II sente necessidade de «restituir ao homem de hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo para poder recuperar e promover a sua plena dignidade [FR, 6]».
Da nossa parte, sondámos possibilidades de superação desta descrença na verdade, que dá azo à cisão entre Fé e Razão. Parece-nos que um testemunho cristão autêntico e inteligente é uma força poderosa para lutar contra a descrença e o cepticismo, abrindo frestas de esperança nesse muro de fumo que nos rodeia. Nesse sentido, os santos são modelos a imitar, não só pela sua coragem e generosidade mas pela forma ousada como amaram. As nossas acções devem ser nutridas pelo Amor, pois este detém um dinamismo conciliador, capaz de nos guindar para a verdade e fomentar a dialéctica Fé e Razão. Mas se o conceito Amor está vilipendiado e esvaziado de sentido, troquemo-lo pelo de compaixão, talvez mais actual e preservado. Estar atento aos sofrimentos do outro e ampará-lo e confortá-lo na sua dor pode ser a força revolucionária que temos para mudar o mundo: «Vêde como eles se amam». Por fim, cremos que esta busca de segurança, de pilares para a nossa vida, passa pelo regresso urgente à Sagrada Escritura, sede da nossa identidade e das máximas intemporais que nortearam e podem voltar a nortear não apenas cristãos mas toda a humanidade. Para os cristão, impõe-se ainda a (re)descoberta dos documentos da Igreja e dos escritos dos nossos pais na fé.

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